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Edição de Setembro de
2000 |
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Arquitectura e Natureza O Ar e
o Fogo, a Terra e a Água por Fausto Simões |
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Procuramos o sítio
sossegado, a velha casa no campo, o abrigo na floresta ou na
serra, o lugar ao pé do imenso mar, mas levamos connosco a
«máquina do progresso» que não dispensamos e de que, tantas
vezes, abusamos, destruindo inexoravelmente os equilíbrios e
as surpresas que procuramos. O abuso sistemático da máquina
uniformizará o país, reduzindo-o a um «lugar-comum»,
banalizando-o até nunca mais podermos encontrar senão
caricaturas daquela diversidade autêntica e daquele equilíbrio
profundo que nos possibilitavam uma evasão, ou uma incursão,
verdadeiramente recriativa. Isto é bem visível no bulldozer
que, seguindo mecanicamente abstracções desenhadas na pressa
dos gabinetes a quilómetros de distância, se lança sobre o
terreno, descarnando montes e aterrando vales; leva, assim, à
sua frente caminhos, fontes e poços, terras de cultura, sebes
e bosquetes protectores, florescentes e odoríferos, cheios de
vida. Num ápice que não permite o arrependimento desfigura-se,
em definitivo, a fisionomia particular de um sítio longamente
afeiçoada pelo tempo e pelas gerações... |
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O ar e o fogo
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A banalização
«maquinista» pode ser bem menos visível noutros casos, por
isso mais insidiosos, como no ar condicionado que nos isola no
ambiente uniformizado a 22ºC e 50 por cento de humidade,
povoado de insanos compostos orgânicos voláteis, formaldeído,
tolueno, tricloroetileno e outros produtos libertados por
materiais que imitam a natureza: madeiras, flores, aromas
artificiais que as máquinas nos fazem chegar. Este
isolamento de aquário impede-nos de gozar o revigorante ar da
serra ou de inspirar a intensa maresia, tal como nos impede de
viver ao compasso das flutuações naturais de um clima
temperado, amaciadas apenas, para nosso prazer e grátis, por
uma arquitectura feita ao sítio e não contra ele. O abuso
de «escravos mecânicos» tem destes efeitos perversos, dentro
das nossas casas, em frontal contradição com o contacto mais
íntimo com a natureza, quando o procuramos numa segunda
residência. Mas também tem outros efeitos indirectos e
longínquos, não menos reais e perversos, associados ao ciclo
da energia que consomem. Tomando o CO2 como referência para as
emissões de gases que provocam o efeito de estufa (GHG),
estima o Intergovernmental Panel on Climatic Change (IPCC) que
os edifícios de habitação e serviços foram responsáveis, em
1990, pela produção de 1,7 biliões de toneladas de carbono,
correspondendo a 29 por cento do total global das emissões de
CO21. |
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Tendo em atenção
estes nocivos efeitos globais, será sensato aproveitar
directamente a energia do Sol, do vento ou da água corrente,
não só para nos aquecer, arrefecer, ventilar e iluminar, o que
a arquitectura pode fazer em grande parte, mas também para
aquecer a água dos nossos banhos e para «produzir» a energia
que alimentará os electrodomésticos que hoje não dispensamos –
o frigorífico, a lâmpada eléctrica, a televisão, etc. –, a
escolher seguindo as normas europeias de certificação
energética e de rotulagem ecológica. Para isto, as nossas
casas deveriam integrar colectores solares planos ou
parabólicos (CPC), células fotovoltaicas, aerogeradores ou
mesmo uma mini-hídrica, de acordo com específicas
potencialidades locais e as disponibilidades financeiras. Um
lugar à parte para o fogo no lar, feito com lenha, pela sua
importância que transcende a utilidade prática, mas também
pelos cuidados a ter na queima e com a conservação da
biomassa. |
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Admitindo que
seremos progressivamente mais exigentes, o uso directo de
energias renováveis disponíveis no local poderá conter
significativamente o consumo de energia comercial, como
indicam, por exemplo, os resultados da «Casa Autónoma»
construída em Friburgo (Alemanha, 1992), pelo Instituto
Fraunhofer2. Toda a energia que esta casa consumiu num ano,
obtida a partir da energia solar disponível no local, iguala a
que a família de um vulgar cidadão como eu compra num mês, num
ameno e ensolhado clima mediterrânico e com um nível de
conforto muito mais baixo! Pensando no nosso futuro, não
têm tido a merecida divulgação os resultados da observação de
algumas casas construídas em Portugal com cuidados especiais3:
as suas necessidades nominais de energia, seja no Inverno seja
no Verão, são em vários casos inferiores a um décimo dos
valores regulamentares4. |
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A terra e a água
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Também o abuso de
materiais de construção e decoração artificiais origina, já se
disse, efeitos perversos dentro das nossas casas. Há muito
tempo que estes efeitos são conhecidos. O conhecimento
científico que hoje se tem dos processos envolvidos, mostra
que o Homem se tem prejudicado por jogar cegamente com as leis
da natureza. Lovelock5 conta uma dramática história que se
passou no século passado, protagonizada por papéis de parede
com um pigmento verde feito à base de arsénico. O bolor que se
desenvolveu em compartimentos húmidos, com inadequada
ventilação – o que infelizmente muitos de nós sabem por
experiência própria –, transformou o arsénico do papel de
parede num gás letal, a arsina trimetílica. As pessoas que
dormiam nesses quartos nunca mais acordaram. O abuso destes
materiais é frontalmente contrário à busca de um saudável
contacto com a natureza numa segunda residência, em que se
impõem as qualidades sensíveis e a «respiração» de materiais
como a madeira ou a terra crua. A recuperação de casas antigas
e o aproveitamento de ruínas, em que se integram, é também uma
contribuição para reduzir o lixo de demolições que é muito
avultado. O bom aproveitamento dos materiais em geral, numa
obra bem gerida, tem o importante efeito de diminuir as
toneladas de lixo produzido na construção de uma casa que se
acrescentam às que resultam das demolições. Além dos
efeitos locais perversos, o abuso de materiais artificiais e
exóticos contribui para uma contaminação em maior escala e
provoca efeitos indirectos, pela exploração destruidora de
recursos naturais. |
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São utilizados,
actualmente, cerca de 75 mil produtos químicos sintéticos. Em
1994, mais de um bilião de toneladas de químicos tóxicos foram
lançados no ambiente, dos quais mais de 80 milhões de
toneladas que se sabe ou se suspeita serem cancerígenos6. Sem
dúvida que a utilização de materiais próximos do seu estado
natural origina a menor poluição química. Está a ser estudada
a toxicidade dos materiais ao longo de todo o seu ciclo de
vida, da extracção até à deposição; começam a surgir métodos
de avaliação ambiental que a têm em linha de conta, tais como
o BREEM britânico, para edifícios de serviços, e o holandês
Environmental Preference Method7, mais genérico. Há ainda um
longo caminho a percorrer nesta matéria, mas é de todo o
interesse seguir criticamente estes métodos na selecção dos
materiais para as nossas casas. Mais de metade das
florestas tropicais foi abatida desde o início deste século
XX; 17 milhões de hectares continuam a desaparecer, ano após
ano8. Extensas florestas tropicais são indiscriminadamente
derrubadas, para satisfazer a procura de madeira a aplicar em
revestimentos, estruturas e casas
pré-fabricadas. |
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No entanto, uma boa
gestão das florestas temperadas poderá garantir o fornecimento
continuado de boas madeiras para a construção civil. Países
europeus como a Holanda, a Grã-Bretanha e a Suécia estão a
fazê-lo, tendo criado sistemas de certificação da madeira que
são reconhecidos pelo Forest Stewardship Council (FSC), um
organismo internacional que existe para verificar sistemas de
certificação de florestas bem geridas. Esta certificação
poderá orientar-nos na escolha de madeiras importadas e, em
Portugal, a gestão florestal deveria segui-la. Mas, tal
como acontece com as máquinas, os materiais também provocam
efeitos longínquos e globais, por via da energia gasta no seu
processamento e transporte. Esta energia incorporada nos
materiais de construção de um edifício pode corresponder à
energia despendida na utilização do edifício durante 30 anos9.
Pretendendo-se reduzir a energia incorporada na construção e a
poluição associada (GHG), o aproveitamento de casas
existentes, de materiais de ruínas e de outros materiais
locais têm vantagem sobre novas construções e sobre materiais
exóticos e artificiais. Os métodos de avaliação ambiental dos
materiais de construção, acima referidos, contemplam a energia
neles incorporada. À emissão de gases responsáveis pelo
efeito de estufa e à desflorestação está provavelmente
associada a desertificação mediterrânica, a qual também nos
toca10. Torna-se cada vez mais insustentável que se desperdice
água e se regue com água canalizada as sôfregas espécies
exóticas «de crescimento rápido» que plantámos no jardim, em
vez de aproveitar as espécies frugais, adaptadas às condições
locais de solo e clima. |
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A água que nos cai
do céu nas coberturas e terraços é cada vez menos aproveitada
pelo velho sistema das caleiras e cisternas, por vezes entra
indevidamente na construção e escorre, em regra, por solos
cada vez mais impermeabilizados, para ir sobrecarregar esgotos
e linhas de água em fortes caudais de enxurrada... linhas de
água que, muitas vezes, obstruímos com entulhos e construções
em leitos de cheia, abominando depois as humidades e as
inundações como se fossem maldições da natureza! Em suma,
parece existir uma certa dose de irracionalidade na nossa
construção e utilização das casas que, ao generalizar-se, tem
prejuízos não só locais mas globais. Assim sendo, urge tomar
medidas e aplicar mais os conhecimentos técnicos do que os
equipamentos activos, para evitar o pior e alcançar o melhor
conforto e bem-estar para nós e para os nossos filhos. Os
conhecimentos da arquitectura bioclimática e da engenharia das
energias renováveis para o ar e o fogo, as técnicas para a
sustentabilidade que também abrangem a terra e a água. Mas
deve-se dizer que persistem lacunas nas técnicas para a
sustentabilidade e que prioridades e «boas práticas»
preconizadas na documentação estrangeira podem não o ser para
Portugal, pelo que não dispensam que façamos o nosso próprio
caminho. Todavia, nem os projectistas e outros técnicos, nem
os construtores, nem o mercado de materiais, nem a
administração pública estão, regra geral, devidamente
capacitados e organizados para o fazer. |
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A reabilitação de
casas antigas – e, de um modo geral, o aproveitamento das
casas existentes em Portugal – é o campo privilegiado para o
fazer de forma consequente, tendo sempre presente que isso
requer um grande empenhamento pessoal, dadas as dificuldades
apontadas. |
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1 R.T. Watson e
outros, Climate Change. Impacts, Adaptations and Mitigation of
Climate Change: Scientific-Technical Analyses, EUA, Cambridge
University Press, 1996. |
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2 K. Voss e outros,
«The Self-sufficient Solar House in Frieburg. Results of Three
Years of Operation», in Solar Energy nº 58, 1996, pp
17-23. |
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3 H. Gonçalves e
outros. Edifícios Solares Passivos em Portugal. Altener/INETI,
Lisboa, 1997. |
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4 Regulamento das
Características de Comportamento Térmico dos Edifícios -
Decreto-Lei nº 40/90, de 6 de Fevereiro. |
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5 J.E. Lovelock.
Gaia. Uma Nova Visão da Vida na Terra. Porto, Via Óptima,
1987. |
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6 N. Halliday.
«Construction Health and Safety - Materials Impact».
Conferência Internacional sobre Ambiente, Qualidade e
Segurança na Construção, Lisboa, IST, 1998. |
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7 D. Anink e outros.
Handbook of Sustainable Building. Londres, James & James,
1996. |
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8 E. Labouse. «La
Dimension Écologique», in Techniques & Architecture nº
413, 1994, pp 91-95. |
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9 P. Hastings. «Low
Embodied Energy», in Architecture and the Environment nº 103,
RAIC National Conference, Vancôver, Canadá,
1992. |
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10 Convenção das
Nações Unidas de Combate à Desertificação |
|
– Programa de Acção
Nacional. Direcção Geral das Florestas, Ministério da
Agricultura e Pescas, 1997. |
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